Este texto “A Carta do Além” é muito interessante e de grande valia para nós, cristãos. É de interesse de todo cristão católico procurar saber aquilo que leva ao Céu e também, especialmente, o que deixa de levar. Leia esta carta. Sua visão sobre os acontecimentos da vida não será mais a mesma…!
O autor da presente publicação, no original alemão, prefere conservar no anonimato, tanto a si como os demais personagens do acontecimento.
O escrito, entretanto, corre em prósperas edições, pelas mãos de leitores sempre mais numerosos. Não se pode lê-lo com indiferença ou só por curiosidade. Aos poucos a gente se vê, pessoalmente empenhado em uma valorização reflexa, a um tempo de juízo e de sentimento.
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Clara era uma moça, falecida ainda jovem, em um Convento da Alemanha. Entre os papéis que deixou, encontrou-se o seguinte manuscrito que publicamos, na íntegra, em versão portuguesa.
Os grifos e anotações são nossos.
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NIHIL OBSTAT
Sancti Pauli, 1-6-1967
Sac. Joannes Roatta SSR
IMPRIMATUR
Sancti Pauli, 9-6-1967
Mons. Lafayette
Vig. Geral
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MANUSCRITO:
Eu tinha uma amiga. Isto é, entramos em contato, por causa do escritório, onde trabalhávamos uma ao lado da outra, em uma firma comercial.
Mais tarde Anita se casou e nunca mais a vi. Afinal, reinava entre nós duas, desde o começo, mais cortesia do que propriamente amizade. Por isso mesmo, pouco senti sua ausência, quando ela, após seu casamento, foi morar em um quarteirão de vilas…, muito longe de minha casa.
Quando no outono de 1937, passava minhas férias às margens do lago de Garda, escreveu-me minha mãe, pelos fins da segunda semana de setembro: “veja, Anita N. morreu! Foi vítima de um acidente de automóvel. Foi sepultada ontem em Waldfriedholf, cemitério do bosque”.
Esta notícia me espantou. Sabia que Anita nunca fora muito religiosa. Estaria preparada, quando Deus, assim de improviso, a chamou?
Na manhã seguinte, assisti a santa missa por ela, na capela particular da pensão das freiras, onde estava hospedada, rezei fervorosamente pela paz de sua alma e até ofereci a Comunhão nesta intenção.
Mas, o dia todo senti um certo mal-estar que pela tarde aumentou ainda mais. Adormeci inquieta. Enfim, fui acordada por um violento bater à minha porta. Acendi a luz. O relógio, sobre o criado, marcava meia-noite e dez. Não vi ninguém. Nenhum barulho se ouvia pela casa. Somente o das ondas do lago de Garda que se quebravam monótonas contra a murada do jardim da pensão. De vento, não se ouvia nem um sopro. E no entanto, ao acordar tinha acreditado perceber, além das batidas da porta, um rumor de vento semelhante àquele que se produzia quando meu chefe de escritório, aborrecido, me passava, de mau jeito, alguma carta.
Refleti por um instante se devia levantar-me. “Tudo histórias…, disse resolutamente a mim mesma. — É a tua imaginação excitada depois daquele caso de morte”. Virei-me para o outro lado, rezei alguns “Pater” pelas almas do purgatório e procurei dormir…
Mas, senti-me irresistivelmente invadida por uma sensibilidade interior que se tornava sempre mais lúcida e nítida, enquanto ao redor de mim a profundidade da noite desvanecia em uma transparência indefinível que dava a mim mesma e a todas as coisas circunstantes, um contorno sem espaço, fora do comum.
Levantei-me alucinada e resolvi, mais depressa do que costumava, descer para a capela da casa, como todas as manhãs. Ao abrir a porta do quarto, tropecei em um maço de folhas soltas de papel de carta. Apanhá-las, reconhecer a caligrafia de Anita e dar um grito foi tudo a mesma coisa.
Tremendo, segurava as folhas na mão. Compreendia que em tal estado de espírito não seria capaz de rezar nem sequer um “Pai Nosso” e além disso, subiu-me um sufocamento asfixiante.
Não encontrei melhor recurso que sair ao ar livre. Arrumei um pouco o cabelo, joguei a carta na bolsa e saí de casa. Subi por um trilho que, além da estrada principal (a famosa Gardesana), vai em direção ao monte, entre oliveiras, jardins de residências e moitas de louros.
A manhã surgia luminosa. Outras vezes, a cada cem passos, eu me extasiava diante do magnífico panorama que dali se abre sobre o lago e sobre a ilha do Garda, bela como de fada.
O insondável azul da água me recreava sempre. Contemplava admirada o cinzento monte Baldo, que, do outro lado, se eleva lentamente, desde 64 até mais de 2.200 metros acima do nível do mar. Entretanto, agora, não tinha nenhum interesse por nada disso. Após um quarto de hora de caminho, me deixei cair, mecanicamente sobre um banco que se apóia entre dois ciprestes, onde, ainda no dia anterior, tinha lido, com tanto prazer, a “Jungfer Therese”, de Federer.[1]
Considerei, então, pela primeira vez, os ciprestes como árvores dos mortos; que, no passado, nas cidades do sul, onde frequentemente se vêm, não havia jamais suspeitado.
Agarrei a carta. Faltava a assinatura. Mas, era, com absoluta certeza, a caligrafia de Anita. Não faltava nem mesmo o grande rabisco ornamental do S e o T à francesa, que ela havia aprendido no escritório para aborrecer o Sr. Gr.
O estilo não era o dela. Ao menos, não falava como de costume, pois ela sabia conversar de maneira extraordinariamente amável e sorrir pelos olhos celestes, com seu belo narizinho amassado. Só quando discutíamos assuntos de religião podia tornar-se venenosa e tomar o tom duro desta carta. (E, julgando-a assim, experimento também a amargura de seu estilo áspero!)
A sua carta do outro mundo eu a reproduzo aqui, palavra por palavra, como a li, então. Dizia assim:
“Clara — não reze por mim! Estou condenada[2]. Se lh’o comunico e lh’o refiro mais longamente, não pense que o faça a título de amizade. Nós aqui não amamos a mais ninguém. Faço-o como que forçada. Faço-o como “parte daquela potência que sempre quer o Mal e faz o Bem”.[3]
Na verdade desejaria vê-la também chegar a este estado onde eu já me aportei para sempre.[4]
Não se aborreça com esta intenção. Nós aqui todos pensamos assim. Nossa vontade está petrificada no mal — nisto que vocês, justamente, chamam de “mal”. Mesmo quando nós fazemos algo de “bem” como eu agora, abrindo seus olhos sobre o inferno, isto não acontece com boa intenção.[5]
Lembra-se que há quatro anos nos conhecemos em…? Você tinha, então 23 anos, e estava ali havia já meio ano, quando eu cheguei. Você me livrou de alguns embaraços. Você me deu, como a principiante, bons conselhos. Mas, que quer dizer “bom”?
Eu louvava então o seu “amor ao próximo”. Ridículo! O seu auxílio derivava de pura beatice, como aliás, já o suspeitava desde aquele tempo.
Nós não conhecemos aqui nada de bom. Em ninguém. O tempo de minha juventude você o conhece. Algumas lacunas eu preencho aqui.
Conforme o plano de meus pais, para dizer a verdade, eu não deveria ter existido. “Aconteceu-lhes, porém, esta desgraça”. Minhas duas irmãs já tinham 14 e 15 anos quando eu nasci.
Antes não tivesse existido! Pudesse eu agora aniquilar-me e fugir destes tormentos! Nenhuma volúpia igualaria àquela com que deixaria a minha existência, como um vestido de cinzas que se perde no nada[6]. Mas, eu devo existir. Devo existir assim como me tornei: com uma existência falida.
Quando Papai e Mamãe, ainda jovens, se transferiram do campo para a cidade, ambos haviam perdido o contato com a igreja. Foi até melhor assim. Simpatizaram-se com pessoas afastadas da igreja. Conheceram-se em uma sala de bailes e, meio ano depois, “tiveram” que se casar.
Na cerimônia nupcial caiu sobre eles tanta (!) água benta que mamãe se contentava em ir à igreja, para a missa dominical, umas duas vezes por ano. Nunca me ensinou a rezar direito. Esgotava-se nos apertos da vida quotidiana, embora nossa situação não fosse desfavorável. Palavras como: rezar, missa, água benta, igreja, eu as escrevo com uma repugnância sem igual.
Detesto tudo isto como detesto quem frequenta a igreja, e, em geral, todos os homens e todas as coisas. De tudo, com efeito, nos advém tormento. Todo o conhecimento recebido na hora da morte, toda lembrança de coisas vividas ou sabidas é, para nós, uma chama ardente[7]. E todas as lembranças nos mostram aquele aspecto que nelas, era Graça. Que nós desprezamos. Que tormento é este! Nós não comemos, não dormimos, não andamos por nossos pés. Espiritualmente acorrentados, olhamos imbecilizados “com urros e ranger de dentes”[8] a nossa vida levada aos montes, odiando e atormentados!
Quer saber? – Nós aqui bebemos ódio como água. Também uns para com os outros[9]. Sobretudo, odiamos a Deus.
Quero que você entenda. Os santos no céu devem amá-Lo, porque eles O vêem sem véu, na sua fulgurante beleza. Isto os torna de tal maneira felizes que nem se pode descrever. Nós o sabemos, e este conhecimento nos torna furiosos.[10]
Os homens na terra que conhecem a Deus pela criação e pela revelação podem amá-Lo. Mas não estão obrigados a isto.
Aquele que tem fé — escrevo rangendo os dentes — que refletindo, contempla Cristo na Cruz, com os braços abertos, acabará por amá-Lo. Mas, aquele de quem Deus se aproxima só na desgraça, como punidor, como justo vingador, porque foi um dia, por ele repudiado, como acontece conosco — este não pode senão odiá-Lo[11]. Com todo o ímpeto de sua pérfida vontade. Eternamente. Por força da livre resolução de ser separado de Deus: resolução pela qual, morrendo, matamos nossa alma. Resolução que nem mesmo agora retiramos nem teremos, jamais, vontade de retirá-la.
Você compreende, agora, por que é que o inferno dura para sempre? Porque nossa obstinação jamais se desligará de nós.
Constrangida — acrescento que Deus é misericordioso até mesmo conosco. Digo “constrangida”, pois que, mesmo escrevendo espontaneamente esta carta, nem assim me é permitido mentir, como quereria. Muitas coisas escrevo no papel contra a minha vontade. Até mesmo o ímpeto de impropérios que gostaria de vomitar, eu o devo abafar. Deus foi misericordioso conosco não deixando esgotar na terra nossa malvada vontade como estávamos dispostos a fazer. Isto teria aumentado nossas culpas e nossas penas.
Ele nos fez morrer antes do tempo, como eu, ou fez interferir outras circunstâncias atenuantes. Agora, Ele se mostra misericordioso conosco, não nos obrigando a aproximar-nos d’Ele mais do que o estamos, neste remoto lugar infernal. Isto suaviza o tormento.[12]
Todo passo que me levasse mais perto de Deus me causaria uma pena maior do que aquela que traria a ti o aproximar-te de uma fogueira.
Você se espantou, quando eu, certa vez, durante um passeio, lhe contei que meu pai, alguns dias antes de minha primeira comunhão, me havia dito: “Anita, procure merecer um belo vestidinho, porque o resto é exagero e exibição”.
Pelo seu espanto, quase fiquei envergonhada. Agora, me rio disto.
A única coisa razoável naquela exibição era que só se admitia à Comunhão, aos doze anos. Eu, naquela época, já me sentia bastante atraída pelos divertimentos do mundo, de modo que, sem escrúpulos, punha de lado as coisas religiosas, e não dei grande importância à primeira comunhão. Agora, nos causa furor, que muitos meninos façam a primeira comunhão aos sete anos. Fazemos tudo para dar a entender ao povo, que deve faltar às crianças uma instrução adequada. Elas devem, antes, cometer alguns pecados mortais. Então a partícula branca não provoca nelas um tão grande dano como quando em seus corações vivem ainda, a fé, a esperança e a caridade. Chi! Esta coisa recebida no batismo. Você se lembra, como eu já havia sustentado na terra, tal opinião.
Fiz referência a meu pai. Ele estava sempre em atrito com mamãe. Fiz alusão a eles com você, apenas algumas vezes, porque me causavam vergonha. Coisa ridícula a vergonha do mal! para nós aqui, tudo é a mesma coisa.
Meus pais nem sequer dormiam mais no mesmo quarto, eu dormia com mamãe e papai no quarto do lado, onde ele podia entrar, livremente a qualquer hora da noite. Ele bebia muito; e, deste modo acabava com o nosso patrimônio. Minhas irmãs estavam ambas empregadas, e necessitavam, conforme diziam, do dinheiro que ganhavam. Mamãe começou a trabalhar para ganhar também alguma coisa.
No último ano de sua vida, papai maltratava muito mamãe quando ela não lhe queria dar alguma coisa. Para comigo foi sempre carinhoso.
Um dia — eu lhe contei e você ficou chocada com meu capricho (mas, você não ficou chocada com minhas referências?) — um dia, ele teve que levar de volta duas vezes, os sapatos que comprou para mim, porque a forma e os saltos não eram bem modernos.[13]
Na noite em que meu pai foi atacado de apoplexia mortal, aconteceu alguma coisa que eu, por receio de uma interpretação desagradável, nunca consegui contar-lhe: foi quando fui assaltada, pela primeira vez, por meu espírito atormentador de agora.
Dormia no quarto de minha mãe. Seus suspiros regulares indicam um sono profundo. Quando de repente escuto chamar-me pelo nome. Uma voz desconhecida me dizia: “Que será se papai morrer?”
Eu não gostava mais de meu pai, desde quando maltratava minha mãe, como afinal, eu não gostava, desde aquele tempo, absolutamente de ninguém, mas, era afeiçoada somente a algumas pessoas que eram boas para mim. Amor sem esperança de recompensa terrena existe somente nas almas em estado de graça. E eu não o possuía. Assim, respondi à misteriosa pergunta, sem ligar de onde viesse: “mas, não morre nunca!”
Após uma breve pausa, novamente a mesma pergunta claramente percebida. “Mas, não morre nunca” me escapou bruscamente da boca.
Pela terceira vez fui interrogada: “Que será se teu pai morrer?”
Apresentou-se-me à mente, como papai costumava chegar em casa quase sempre embriagado, como gritava, como maltratava mamãe e como nos havia reduzido a uma condição humilhante diante do povo. Então gritei aborrecida: “E, para ele é bom”.
Então, tudo sossegou. Na manhã seguinte, quando mamãe quis arrumar o quarto do papai, encontrou a porta fechada à chave. Pelo meio-dia resolvemos arrombar a porta. Meu pai, meio vestido, jazia morto sobre a cama. Ao ir buscar a bebida na adega, devia ter-lhe acontecido algum acidente. E, já se encontrava, havia muito tempo, adoentado.
(Teria Deus ligado à vontade de uma filha, para com a qual, aquele homem havia sido, de certo modo, bom, a ocasião para converter-se?)[14]
Marta K e você me induziram a entrar na “Associação das Moças”. Realmente, nunca ocultei que achava bastante sintonizadas com o costume paroquial, as instruções das duas presidentes, as Senhoras F. e G.
Os jogos eram divertidos, como você sabe, tive logo um lugar na diretoria. Gostava disso. Também os passeios me agradavam. Deixei-me até induzir, algumas vezes, a ir confessar e comungar. Para dizer a verdade, não tinha nada para confessar. Pensamentos e palavras, para mim, não tinham nenhuma importância. Para praticar ações grosseiras, eu não estava ainda bastante corrompida.
Uma vez você admoestou: “Ana, se você não reza mais, você se perderá”.
Eu, de fato, rezava pouco e, além disso, de muito má vontade. Agora vejo que, infelizmente, você tinha razão. Todos aqueles que se queimam no inferno é porque não rezam, ou não rezaram bastante.
A oração é o primeiro passo para Deus. E continua sendo o passo decisivo. Especialmente a oração àquela que foi a Mãe de Jesus Cristo, cujo nome nós não pronunciamos nunca[15]. A devoção a Ela, arranca ao demônio inúmeras almas que o pecado poria, infalivelmente, nas mãos dele.
Continuo a narração consumindo-me da raiva, e só porque devo.
Rezar é a coisa mais fácil que o homem pode fazer na terra[16]. E, justamente, a esta coisa facílima é que Deus ligou a salvação de cada um. A quem reza com perseverança ele, pouco a pouco, dá tanta luz e fortifica-o, de maneira tal, que no fim, mesmo o pecador mais empedernido, pode definitivamente se elevar. Ainda que estivesse mergulhado na lama até o pescoço.
Nos últimos anos de minha vida não rezei mais como devia, e assim fiquei privada das graças sem as quais ninguém pode se salvar.
Aqui não recebemos mais nenhuma graça. Ao contrário, mesmo que as recebêssemos, nós, cinicamente, as rejeitaríamos. Todas as oscilações da existência terrena terminaram nesta outra vida. Entre vocês, aí na terra, o homem pode subir do estado de pecado ao estado de graça. Da graça cair no pecado. Muitas vezes por fraqueza ou talvez por malícia. Com a morte, este subir e descer acaba porque tem sua raiz na imperfeição do homem livre. Agora, já atingimos o estado final. Já com o crescer dos anos as transformações se tornam mais raras.
No entanto, até à morte, se pode sempre converter para Deus ou voltar-lhe as costas. E, no entanto, o homem, como que arrastado pela corrente, antes do desenlace, com os últimos e fracos restos da vontade, se comporta como estava acostumado em vida. O hábito, bom ou mau, torna-se segunda natureza. Esta o arrasta consigo.[17]
Assim aconteceu também comigo. Há anos eu vivia afastada de Deus. Por isso na última chamada da graça, me decidi contra Deus.
O fato de que eu pecasse frequentemente, para mim não foi fatal, mas, fatal foi que eu não quis mais ressurgir.
Você várias vezes me admoestou para ouvir pregações e ler livros de piedade. “Não tenho tempo” era a minha resposta ordinária. Não faltava mais nada para aumentar a minha incerteza interior!
Afinal, devo constatar isto: desde o momento em que a coisa já estava assim adiantada, pouco antes de minha saída da “Associação das Moças”, me teria sido imensamente duro tomar uma outra estrada. Eu me sentia insegura e infeliz. Mas, diante da conversão surgia uma muralha. Você não o deve ter percebido e considerava coisa tão simples que um dia me disse: “Mas, faça uma boa confissão, Ana, e tudo retoma seu lugar”. Eu sabia que teria sido mesmo assim. Mas, o mundo, o demônio e a carne me prendiam já muito fortemente em suas redes.
Ao influxo do demônio eu nunca dei crédito e agora atesto que ele influi fortemente nas pessoas que se encontram nas condições em que me encontrava então. Somente muitas orações de outros e mesmo minhas, unidas com sacrifícios e sofrimentos, teriam conseguido arrancar-me dele. E, isto, só aos poucos. Se existem poucos obsessos externamente, há uma infinidade de obsessos internamente. O demônio não pode roubar a vontade livre daqueles que se entregam ao seu influxo. Mas, como castigo de sua, por assim dizer, apostasia metódica de Deus, este, permite que o “maligno” se aninhe neles.
Eu odeio também o demônio. No entanto, ele me agrada porque procura arruinar vocês; ele e os seus satélites, ou espíritos caídos com ele, no princípio do tempo. Eles existem aos milhões. Vagabundeiam pela terra como um enxame de moscas e vocês nem o percebem.[18]
Não compete a nós condenados a missão de ir tentar os homens. Isto é tarefa dos espíritos decaídos[19]. Verdadeiramente, isto aumenta mais ainda o seu tormento cada vez que eles arrastam cá para o inferno uma alma humana. Mas, o que é que não faz o ódio?[20]
Embora eu andasse por caminhos afastados de Deus, Deus sempre me seguia. Preparava o caminho para a graça com atos de caridade natural que eu fazia muitas vezes por inclinação do meu temperamento. Algumas vezes, Deus me atraía para alguma igreja. Então, eu sentia, como que, uma saudade.
Quando cuidava de mamãe adoentada, não obstante o trabalho do escritório durante o dia e de certo modo me sacrificava de verdade, estes acenos de Deus agiam poderosamente. Uma vez, na capela do Hospital, onde você me havia levado, durante o intervalo do meio-dia, senti dentro de mim alguma coisa que teria sido necessário apenas um passo para a minha conversão: e eu chorei!
Mas, ao depois, a alegria do mundo passava de novo, como uma torrente, sobre a graça. A semente se sufocava entre os espinhos.[21]
Com a declaração de que a religião é questão de sentimento, como sempre se dizia no escritório, atirei ao cesto também esta moção de graça, como todas as outras.
Certa vez, você me chamou a atenção porque em vez de uma genuflexão bem feita, fiz apenas uma desajeitada inclinação, dobrando o joelho. Você pensou que fosse preguiça. Não parecia sequer que você suspeitasse que eu desde aquele tempo, já não acreditava mais na presença de Cristo na Eucaristia.
Agora acredito, mas só naturalmente, como se acredita em um temporal, do qual decorrem os efeitos. Até então, eu estava instalada, propriamente, em uma religião a meu modo. Sustentava a opinião que entre nós, no escritório, era comum, que a alma após a morte reaparece em um outro ser. E deste modo, continuaria a peregrinar sem fim. Com isto, o angustiante problema do além era posto em seu lugar e ao mesmo tempo se tornava inofensivo para mim.
Porque você não me lembrou a parábola do rico epulão e do pobre Lázaro, em que o narrador, Cristo, manda, imediatamente, um para o inferno e outro para o céu?…[22]
Afinal, o que é que você teria conseguido? Nada, além do que conseguiram seus outros sermões de carolice!
Pouco a pouco, criei para mim mesma um deus. Bastante afastado de mim, para não ter que manter nenhuma relação com ele. Bastante vago para, conforme a necessidade, sem mudar minha religião, deixar-se assemelhar a um deus panteístico do mundo, ou então, para deixar-se poetizar como um deus solitário. Este deus não tinha nenhum céu para presentear-me e nenhum inferno para castigar-me. Eu o deixava em paz, e ele também a mim. Nisto consistia minha adoração a ele.
“A gente acredita, de boa vontade, no que nos agrada”. No correr dos anos, me conservei bastante convicta desta religião. Deste modo, podia-se viver. Somente uma coisa me teria quebrado a cabeça: uma longa e profunda dor. E esta não veio!
Compreendi agora o que significa: “Deus castiga aqueles que ele ama?”[23]
Era um domingo de julho, quando a Associação das Moças, organizou uma excursão a… O passeio me teria sido bem agradável. Mas, aqueles sermões insípidos… passar por beata…
Uma outra imagem bem diferente daquela de Nossa Senhora de… estava agora no altar do meu coração. Max N. um comerciário vizinho. Pouco tempo antes, havíamos algumas vezes transado juntos. Justamente para aquele domingo, ele me havia convidado para um passeio. Aquela com que ele costumava passear estava doente no hospital.
Ele havia compreendido que eu estava de olho nele. Casar-nos, eu ainda não pensava naquele tempo. Era realmente possível, mas, ele se comportava demasiadamente delicado com todas as moças. E, eu até aquela época, desejava um homem que fosse exclusivamente meu. Desejava, não só ser mulher, mas, mulher única. Um certo traquejo natural, de fato, sempre tive.
(É verdade! Anita, com toda a sua indiferença religiosa, tinha algo de nobre no seu procedimento. Eu me espanto ao pensar que também pessoas bem educadas podem ir para o inferno, quando são tão mal-educadas a ponto de fugir de Deus).[24]
Naquele passeio Max se derreteu em gentilezas. E não houve lugar para conversações padrescas, como entre vocês.
No dia seguinte, no escritório, você me fez reclamações por não ter ido com vocês a…, e eu lhe descrevi meu divertimento naquele domingo. Sua primeira pergunta foi: “Você assistiu à Missa?” “— Bobinha! Como podia ir à Missa se a saída já estava marcada para as seis!” Lembra-se ainda como eu, nervosa, acrescentei: “Deus não pensa nestas minúcias, como os padrecos de vocês!”
Agora devo confessar: Deus, não obstante sua infinita bondade, pesa as coisas com maior precisão do que todos eles (os padres).
Depois daquele primeiro passeio com Max, fui ainda uma vez à Associação: pelo Natal para celebrar a festa. Havia alguma coisa que me convidava a voltar. Mas, internamente, me sentia já, afastada de vocês.
Cinema, baile, passeios, se sucediam sem trégua. Max e eu brigamos sim, algumas vezes, mas, eu soube sempre acorrentá-lo de novo, em mim.
Insuportável tornou-se-me a outra pretendente que, saindo do hospital, procedeu como uma louca. Realmente para sorte minha. Pois, minha nobre calma impressionou tanto o Max que ele acabou decidindo que eu fosse a preferida. Eu soube enchê-la de ódio falando friamente: por fora, positiva, por dentro vomitando veneno.
Tais sentimentos e tal procedimento preparam-me, excelentemente, para o inferno. São diabólicos no sentido mais estrito da palavra.
Mas, por que lhe conto isto? Para relatar como me afastei definitivamente, de Deus.
Não que eu e Max, tenhamos, muitas vezes, chegado aos extremos da familiaridade. Eu compreendia que me teria rebaixado aos seus olhos, se me tivesse entregue, completamente, antes do tempo. Por isso, soube controlar-me. Mas, em si, toda vez que o julgava útil, estava sempre disposta a tudo. Devia conquistar Max. Para isso, nada era caro demais. Além disso, pouco a pouco nos amávamos, possuindo nós dois muitas e preciosas qualidades que nos faziam estimar um ao outro. Eu era hábil, inteligente, de agradável companhia. Assim segurei Max, fortemente na mão e consegui, ao menos nos últimos meses antes do casamento, ser a única a possuí-lo.
Nisto consistiu minha apostasia de Deus: elevar uma criatura à categoria de ídolo para mim. Em nenhuma outra coisa pode acontecer isto, de modo que abranja tudo, como no amor de uma pessoa de outro sexo, quando este amor fica encalhado nas satisfações terrenas.
É isto que forma o seu atrativo, o seu estímulo e o seu veneno. A “adoração” que eu tributava a mim mesma, na pessoa de Max, tornou-se para mim, religião vivida. Era o tempo em que, no escritório, eu me insurgia, venenosa, contra os igrejeiros, os padres, as indulgências, contra o resmungo dos rosários e outras bobagens.
Você procurou, mais ou menos argutamente, tomar a defesa de tais coisas. Sem desconfiar, aparentemente, que no mais íntimo do meu ser, não se tratava, na verdade, destas coisas.
Eu procurava, mais que tudo, um apoio para minha consciência — e tinha, então, necessidade de um tal sustento — para justificar, também com a razão a minha apostasia.
Afinal de contas, eu me revoltava contra Deus. Você não me compreendeu, considerando-me, ainda católica. Queria mesmo ser chamada assim; pagava até as taxas da igreja. Uma certa “contra-garantia” pensava, não devia prejudicar-me.
As suas respostas, pode ser que algumas vezes, tenham acertado o alvo. Para mim, nada adiantavam, porque você não devia ter razão. Por causa destas relações fictícias entre nós duas, é que foi mínimo o pesar de nossa separação, por ocasião de meu casamento. Antes do casamento confessei-me e comunguei ainda uma vez. Era obrigatório. Eu e meu marido, sobre este ponto, pensávamos do mesmo modo.
Por que não deveríamos satisfazer esta formalidade? Cumpramo-la também nós, como qualquer outra formalidade.
Você qualifica de indigna uma tal comunhão. Pois bem, depois daquela comunhão “indigna”, eu tive mais calma na consciência. Mas, também, foi a última.
A nossa vida conjugal transcorria, em geral, numa invejável harmonia. Em todos os pontos de vista tínhamos a mesma opinião. Até nisto: não queríamos arcar com o peso dos filhos. Realmente, meu marido, de boa vontade, teria tido um. Mais de um, não, é claro. No fim, eu soube desviá-lo também deste desejo.
Vestidos, móveis de luxo, salões de chá, passeios e viagens de carro e semelhantes distrações, me interessavam mais[25]. Foi um ano de prazer na terra aquele que transcorreu entre meu casamento e minha morte repentina.
Todo domingo, saíamos de carro ou íamos visitar os parentes de meu marido, (dos de minha mãe, agora me envergonhava). Estes flutuavam na superfície da existência, nem mais, nem menos que nós. Intimamente, é claro, nunca me sentia feliz, embora, externamente risse.
Havia, sempre, dentro de mim, alguma coisa de indeterminado que me roía. Teria querido que após a morte, a qual naturalmente, devia estar ainda muito longe, tudo acabasse.
Mas, é mesmo, como um dia, quando pequena, ouvi dizer na prática: que Deus premia toda obra boa que a gente faz e quando não a puder recompensar na outra vida, fá-lo na terra.
Inesperadamente, recebi uma herança da tia Lotte. Meu marido felizmente conseguiu elevar seus vencimentos a uma notável quantia. Assim, pude organizar nova residência de maneira atraente.
A religião não refletia mais, senão de longe, a sua luz pálida, fraca e duvidosa. Os bares da cidade, os hotéis em que passávamos durante as viagens, não nos levavam, de certo, para Deus. Todos os que frequentavam aqueles lugares, viviam como nós, “de fora para dentro” e não “de dentro para fora”. Se em viagens de férias visitávamos alguma igreja, procurávamos deleitar-nos com o conteúdo artístico das obras. O clima religioso que inspiravam, especialmente, aquelas da Idade Média, eu sabia neutralizar, criticando alguma circunstância secundária: um frade acanhado, ou mal vestido que nos guiava — o escândalo dos monges que queriam passar por santos e vendiam licores — o eterno repique de sinos para as funções sagradas só para ajuntar dinheiro…
Assim, soube, continuamente, espantar de mim a Graça, toda vez que ela batia à minha porta.
Deixava livre desabafo ao meu mau humor de modo particular sobre certas representações medievais do inferno, nos cemitérios ou em outros lugares, em que o demônio assa as almas em brasas vivas e incandescentes, enquanto seus companheiros, de longas caudas, arrastam pra cá novas vítimas. Clara! O inferno pode-se errar ao descrevê-lo, mas não se exagera nunca!
O fogo do inferno, eu sempre o ataquei decisivamente. Você sabe, como durante uma discussão a respeito, lhe coloquei um fósforo diante do nariz e lhe perguntei com sarcasmo: “tem este cheiro?” Você apagou, depressa a chama. Aqui ninguém a apaga. E, eu lhe digo: o fogo de que se fala na Bíblia não significa tormento de consciência, não. Fogo é fogo! E deve-se entender literalmente aquilo que disse Ele: “Afastai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno!” Literalmente![26]
“Como pode o espírito ser atingido pelo fogo material?” Perguntará você.
Como pode sua alma sofrer, na terra, quando você coloca seu dedo no fogo? A alma, de fato, não queima. No entanto, que tormento experimenta o indivíduo todo! De modo análogo, nós não estamos espiritualmente ligados ao fogo, segundo a nossa natureza e segundo as nossas faculdades. Nossa alma está privada do seu natural “bater de asas”, nós não podemos pensar aquilo que queremos.[27]
Não olhe com espanto para estas linhas: este estado, que, para vocês, não significa nada, me queima sem me consumir. Nosso maior tormento consiste em saber que nós jamais veremos a Deus.
Como pode isto atormentar tanto, uma vez que na terra a gente fica tão indiferente? Enquanto o punhal está sobre a mesa nos deixa indiferente. Vê-se que está bem afiado, mas, não o experimentamos. Enfia este punhal na sua carne e você começará a gritar de dor. Nós agora sentimos a perda Deus, antes, somente, pensávamos nela.[28]
Nem todas as almas sofrem em igual medida. Com quanto maior maldade e quanto mais sistematicamente uma pessoa pecou, tanto mais grave pesa sobre ela a perda de Deus e tanto mais a sufoca a criatura de que ela abusou.
Os católicos condenados sofrem muito mais do que os de outras religiões, porque estes, geralmente, receberam e desprezaram mais graças e mais luz.
Quem teve mais conhecimento, sofre mais duramente do que quem conheceu menos. Quem pecou por malícia sofre mais agudamente do que aquele que cai por fraqueza. Mas, ninguém sofre mais do que mereceu. Oh! Se isso não fosse verdade, de modo que eu tivesse um motivo para odiar!
Você me disse um dia que ninguém vai para o inferno sem saber e que isto teria sido revelado, por uma santa.
Eu me ri disso. Mas, depois, me escondi atrás desta declaração: “qual nada, em caso de necessidade, haverá bastante tempo para voltar atrás” me dizia secretamente.
E é verdade. Realmente, antes de meu inesperado fim, eu não conhecia o inferno como ele é. Nenhum mortal o conhece. Mas, eu tinha plena consciência: “se morres, vais, no mundo do além, rápida como uma flecha, contra Deus. Sofrerás as consequências”.
Eu não dei um passo sequer para trás, como já disse, porque estava dominada pelo hábito. Impelida por aquela conformidade pela qual os homens quanto mais envelhecem tanto mais agem em uma mesma direção. Minha morte foi assim.
Há uma semana — falo conforme a conta de vocês, porque, com relação à dor, poderia dizer que já faz dez anos, que queimo no inferno ― há uma semana, portanto meu marido e eu fizemos um passeio de domingo, o último para mim.
O dia surgiu radiante. Sentia-me bem como nunca. Invadiu-me um sinistro sentimento de felicidade que serpejou em mim durante todo o dia. Quando, de repente, na volta, meu marido foi ofuscado por um carro que vinha em alta velocidade.
Perdeu o controle.
“Jesus” me saiu dos lábios, como um arrepio. Não como oração, só como grito.[29]
Uma dor lancinante invadiu-me toda — comparada com a de agora, uma coisa à toa. Logo, perdi os sentidos.
Estranho! Naquela manhã surgiu em mim de modo inexplicável este pensamento: “poderias ainda uma vez ir à missa”. Insistente como um pedido.
Claro e resoluto o meu “não” partiu o fio dos pensamentos: “com estas coisas é preciso acabar de uma vez. Arco com todas as consequências”. Agora as sofro.
Isto que aconteceu após minha morte, você, já o saberá. A sorte de meu marido, de minha mãe, tudo o que aconteceu a meu corpo, o desenrolar de meus funerais, são conhecidos por mim em todos os seus pormenores, mediante conhecimentos naturais, que nós temos aqui.
O que afinal acontece na terra, nós só o sabemos confusamente. Mas aquilo que de alguma maneira nos atinge de perto, nós o conhecemos. Assim, vejo também onde você passa seu tempo.[30]
Eu mesma me acordei, inesperadamente, da escuridão, no instante de minha morte. Vi-me como que inundada por uma luz deslumbrante. Foi no lugar mesmo onde jazia meu corpo. Aconteceu como em um teatro, quando na sala, de repente, se apagam as luzes, o pano de boca se rasga rumorosamente, e se abre uma cena inesperada, horrivelmente iluminada. A cena de minha vida. Como em um espelho minha alma se mostrou a mim mesma. As graças desprezadas da juventude até ao último “não” diante de Deus. Eu me senti como um assassino diante do qual, durante o processo judiciário, é levada sua vítima desfalecida.
— Arrepender-me? Nunca![31]
— Envergonhar-me? Tão pouco!
Eu não podia, porém nem sequer resistir-me diante dos olhos de Deus por mim rejeitado. Não sobrava senão um recurso: a fuga. Como Caim fugiu do cadáver de Abel, assim, minha alma foi impelida para longe daquela vista de horror. Isto foi o juízo particular. O juiz invisível disse: “afasta-te de mim!” Então minha alma, como uma sombra amarela de enxofre precipitou no lugar do eterno tormento.[32]
Assim, terminava a carta de Anita, procedente do inferno. As últimas palavras eram quase ilegíveis, de tão deformadas que estavam, A própria carta se incinerou nas minhas mãos.
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