Santa Maria Egípcia
Santa Maria Egipcíaca nasceu no
Egito no século V, e com apenas 12 anos decidiu sair de casa buscando os
prazeres da vida. Porém sua vida mudaria no momento em que conheceu um
grupo de peregrinos Cristãos que rumavam ao Santo Sepulcro,
acompanhando-os.
Apesar de todos os seus esforços de
tentar entrar três vezes na igreja, então Santa Maria Egipcíaca ouviu
uma voz interior que lhe mostrava o quanto era escrava do pecado. Após
esse ocorrido ela recorreu à Virgem Maria, que estava representada ali, e
em oração se comprometeu a um caminho de verdadeira conversão,
conseguindo então ingressar na Igreja.
Após o seu arrependimento Santa Maria
Egipcíaca foi levada ao deserto de Judá, onde viveria pelos próximos 40
anos, recorrendo a Nossa Senhora nos momentos de grande tentação.
Próximo de falecer o padre Zózimo foi
passar seus últimos dias também no deserto de Judá, e conheceu Santa
Maria Egipcíaca, levando-a a comunhão, e na sexta feira após comungar
ela faleceu, e foi enterrada por Zózimo, conforme um bilhete que estava
no corpo dela.
Vida de Santa Maria do Egito, a Penitente.
É
algo louvável esconder o segredo dos Reis; mas há glória em publicar as
obras de Deus, como diz o Anjo a Tobias, quando este recobra de maneira
miraculosa a visão – tendo passado por tantos perigos goza então, dos
efeitos do amor e da ajuda de Deus. É bastante perigoso descobrir os
segredos dos príncipes e, contrariamente, causa muito prejuízo à alma
calar-se sobre as ações ilustres, que Deus faz em favor dos homens pelo
excesso de Sua bondade e de Sua misericórdia. É portanto temerário
encobrir com o silêncio as maravilhas divinas, por um justo julgamento.
Seria cair na mesma condenação daquele servo inútil que ao invés de
aproveitar do talento recebido escondeu-o na terra. Eu não sepultaria
nas trevas uma história tão santa quanto esta que chegou ao meu
conhecimento. E não é preciso sequer acrescentar fé ao que vou escrever,
considerando-se o espanto, que ações tão extraordinárias causarão. Deus
me proteja de ser mentiroso em assuntos santos, e de violar a verdade
daquilo que concerne a Sua glória; não tomarei parte no perigo que
correm aqueles, que não compreendem senão as coisas baixas, e julgando
indignamente a grandeza de um Deus que Se fez homem, não acrescentarão
nada de fé a este discurso. E há pessoas que depois de o terem lido,
recusam-se a lhe dar o crédito e a admiração que merece uma história tão
miraculosa. Suplico a Deus que tenha piedade delas e abra-lhes o
espírito, a fim que elas escutem Sua Santa palavra, e que não se tornem
culpadas pelo desprezo, de tantos milagres que Ele decidiu fazer em toda
a eternidade a favor de Seus Eleitos; assim elas agem considerando a
fraqueza da natureza humana, julgando impossível tudo o que lhes é
contado sobre as ações extraordinárias dos Santos.
Eu vou então começar esta narrativa, onde escreverei
palavra por palavra segundo aquilo que se sabe ter acontecido e que me
foi reportado por um homem santo, alimentado pela ciência e pela prática
das coisas divinas. E, que ninguém se deixe tomar pela incredulidade,
como se fosse impossível que tão grande milagre acontecesse hoje em dia,
visto que a graça de Deus – que século a seculo circula na alma dos
santos – torna-os Seus amigos e faz Profetas; assim como Salomão nos
ensina através do conhecimento que Ele lhe deu. Mas não se deve separar o
relato deste grande e generoso combate de Maria do Egito, do modo com
que ela terminou seus dias na terra.
Capítulo 1
O abade Zózimo – que era um Solitário de grande virtude – tendo
sido tentado por pensamentos de vaidade, apresenta-se-lhe um homem que
lhe diz para ir a um mosteiro perto do Jordão onde ele mesmo fora
recebido.
Havia
num mosteiro da Palestina um homem chamado Zózimo que, tendo sido desde
a sua infância instruído com grande zelo nos exercícios da vida
solitária e educado santamente, fazia brilhar em suas palavras e em suas
ações uma verdadeira piedade. Entretanto, não imaginem que eu queira
aqui falar daquele Zózimo acusado de ensinar erros no que concerne a
crença; os nomes são os mesmos. Este de quem falo, ficou primeiramente
em um mosteiro da Palestina e passando por todos os exercícios da vida
solitária, tornou-se muito recomendado pela pureza de seus hábitos e o
seu fervor na penitência; pois observava inviolavelmente todas as
instruções que lhe davam aqueles que desde a juventude haviam sido
alimentados deste santo modo, de forma a mantê-lo capaz de suportar os
combates que se lhes apresentavam na prática exata das regras e, não
bastando, acrescentou ainda muito de si, pelo desejo que trazia de
sujeitar a carne ao espírito. Assim, jamais percebeu-se uma pequena
falta na menor das coisas e ele realizava tão perfeitamente tudo o que
se esperava de um solitário, que se via com freqüência muitos outros,
tanto das redondezas quanto das províncias distantes, virem até ele e,
por suas instruções e seus exemplos, portarem-se com mais ardor do que
antes, nos outros santos exercícios da penitência.
Tendo tantas qualidades excelentes, meditava sem
cessar sobre as Santas Escrituras, pois, quer estivesse deitado para um
pequeno repouso, quer estivesse levantado, quer trabalhasse com as mãos
ou comesse, seu espírito ocupava-se sempre deste objetivo que se lhe
tornara tão familiar e nunca interrompida a obra de recitar os Salmos e
de meditar sobre as Sagradas Escrituras. Assim, tornado-se digno de ter
seu espírito esclarecido por Deus, aqueles que viviam com ele
asseguravam que freqüentemente era favorecido com visões; o que não é
nem estranho nem incrível, pois nosso Senhor Jesus Cristo diz:
“Bem-aventurados os puros de coração, pois verão a Deus;” com mais razão
ainda àqueles que purificaram a sua carne, que sempre permaneceram em
abstinência e cujo espírito jamais adormece no caminho da piedade; esses
podem ter os olhos iluminados pelas luzes divinas, como marca da
felicidade que os espera na outra vida, onde O verão em toda a Sua
majestade e glória.
Zózimo dizia que estava naquele mosteiro praticamente
desde ter deixado o seio materno, onde viveu até os 53 anos na
observância das regras da vida solitária, e um dia, vendo-se tentado por
alguns pensamentos que lhe faziam crer ser perfeito, em todas as
instruções de quem quer que fosse, dizia consigo: “Há algum Solitário no
mundo que possa ensinar-me algo de novo, ou mostrar-me algo que eu
ainda não tenha realizado por minhas próprias ações, nesta santa maneira
de viver? Haverá alguém que me ultrapasse”?
Como ele se entretinha com estes pensamentos e alguns
outros parecidos, apresentou-se um homem diante dele que lhe disse:
“Zózimo, é verdade que combateste generosamente e tanto quanto um homem
poderia fazer. É verdade que correste bastante na carreira da vida
solitária. Mas não há nenhum homem que possa se vangloriar de ser
perfeito, sobretudo porque tu não sabes ainda que o presente combate é
mais difícil de suportar do que os passados, e a fim de que conheças que
há muitas outras vias para chegar à Salvação, sai de teu país, sai do
meio dos teus próximos, sai da casa de teu pai como o grande patriarca
Abraão, e vai-te ao mosteiro que fica ao longo do Jordão .”
Seguindo aquilo que lhe havia sido recomendado,
Zózimo saiu do mosteiro onde havia sido alimentado desde a sua infância,
e tendo chegado à beira do Jordão – o mais santo de todos os rios – foi
conduzido pelo mesmo homem ao mosteiro, onde Deus lhe ordenara ir.
Tendo batido à porta e falado com o porteiro, este irmão foi dizer ao
abade o qual veio recebê-lo, reconhecendo por seu hábito e por sua
continência tratar-se de um Solitário. Depois que Zózimo pôs-se de
joelhos conforme o costume dos Solitários e que pediu a sua bênção, o
abade lhe disse: “De onde vens, meu irmão? E que assunto te traz até os
pobres Solitários?” Zózimo respondeu: “Meu pai, não estimo ser
necessário dizer-vos de onde venho, e penso que é suficiente que
saibais, que o que me traz é o desejo de encontrar aqui temas de
edificação, pois soube coisas tão vantajosas deste mosteiro e tão dignas
de elogio, que são capazes de levar os homens a unirem-se a Deus.” O
abade retorquiu: “Meu irmão, que Deus, o único que pode curar as
enfermidades da alma, queira por Sua graça instruir-te e a nós também
com Seus mandamentos e conduzir nossos passos para caminharmos nos
santos caminhos; pois não há homem algum que seja capaz de fazer outros,
avançarem na virtude. É preciso que cada um vele cuidadosamente sobre
si mesmo e, sem elevar alto demais seus pensamentos, faça o que lhe for
mais vantajoso para chegar à perfeição; Deus cooperando com ele.
Todavia, já que dizes que a caridade de Jesus Cristo te traz aqui para
ver os pobres solitários, podes permanecer conosco se é este o teu
desejo; e o Bom Pastor, que deu a vida para nossa salvação e que chama
as suas ovelhas cada uma por seu nome, nos alimentará pela graça de Seu
Espírito Santo.” Tendo o abade concluído suas palavras, Zózimo
ajoelhou-se ainda e após ter recebido a benção, respondeu: “Assim seja” e
ficou no mosteiro.
Sobre a perfeição em que se vivia neste mosteiro, onde os Solitários passavam quase toda a quaresma no deserto.
Ele
viu lá, anciãos de rostos veneráveis, admiráveis em suas ações,
fervorosos em espírito, e que serviam a Deus sem qualquer interrupção.
Não havia hora durante a noite em que não se cantasse os salmos, e
durante o dia eles estavam sempre em suas bocas, enquanto trabalhavam
incessantemente com as mãos. Não se sabia o que eram cuidados inúteis.
Não tinham o menor pensamento sobre o bem nem sobre outras coisas
temporais, e apenas conheciam-lhes os nomes; mas empregavam todo o ano
considerando o NADA desta vida, que não é senão, uma passagem cheia de
dores e misérias e meditando sobre coisas semelhantes. Uma coisa somente
parecia-lhes importante e trabalhavam com todo o ardor para adquiri-la:
estarem mortos para o século, ao qual haviam renunciado quando deixaram
o mundo e todas as coisas que dependiam dele. Vivendo assim, como se
não vivessem mais, alimentavam o espírito com uma carne que não lhes
faltava nunca, a Palavra de Deus, e o seu corpo com pão e água somente, a
fim de terem mais motivo para esperar a misericórdia de seu Mestre.
Como contou depois, Zózimo foi bastante edificado por esta maneira de
viver, e excitava-se com os exemplos para avançar na perfeição,
encontrando pessoas que trabalhavam tão poderosamente com ele para
adquirí-la, e mostravam com tanta alegria um novo Paraíso na terra.
Poucos dias depois, chegou o tempo recomendado aos
cristãos pela tradição da igreja, para celebrarem o santo jejum da
Quaresma e para purificarem as almas a fim de se tornarem dignos de
verem os dias da morte e da ressurreição de nosso Salvador. Ora, estes
Solitários faziam todas as suas funções sem serem jamais perturbados,
pois não se abria nunca a porta principal da casa, devido ser este um
lugar de solidão que não somente não era freqüentado, como também não
era conhecido pela maior parte dos vizinhos; e esta regra era observada
desde o estabelecimento do mosteiro, o que me faz crer que foi por esta
razão que Deus enviou Zózimo para lá.
Quero reportar aqui a ordem que observavam estes
Solitários. No primeiro domingo de quaresma celebravam-se os divinos
mistérios segundo o costume, e cada um recebia o corpo e sangue precioso
de Nosso Senhor Jesus Cristo, que dá a vida aos homens. Em seguida,
depois de terem comido um pouco como de hábito, eles se reuniam no
Oratório, onde, tendo feito a oração de joelhos, davam-se uns aos outros
o santo beijo, e ajoelhando-se, beijavam seu abade e pediam-lhe a
bênção, a fim de serem assistidos por suas orações no combate que iriam
empreender. Abriam-se em seguida todas as portas do mosteiro, e,
cantando todos a uma só voz o Salmo: “O Senhor é a minha luz e a minha
salvação, a quem temerei? O Senhor é a minha proteção, quem será capaz
de me assustar?” eles saíam deixando um ou dois irmãos no mosteiro; não
para guardarem o que lá ficava, pois não tinham nada que fosse bom para
os ladrões, mas para não deixarem que o Oratório ficasse sem alguém que
cantasse os louvores a Deus. Cada um levava consigo o que precisava para
viver conforme suas necessidades; uns levavam figos, outros damascos,
outros legumes molhados com água, e haviam os que não levavam nada,
senão seus corpos e seus hábitos, comendo apenas ervas que crescem no
deserto, quando pressionados pela fome. Cada um, era regra para si
próprio e era uma lei inviolavelmente observada entre eles, não
revelarem em que abstinência haviam vivido durante aquele tempo. Para
isso passavam o Jordão e afastavam-se bastante uns dos outros; tinham a
solidão por companhia. E, se viam ao longe vir em sua direção um irmão,
desviavam-se de seu caminho e iam para outro lado, vivendo somente para
Deus e sozinhos, cantando frequentemente os Salmos, e não comendo, senão
em determinados momentos. Após haverem jejuado, voltavam ao mosteiro
antes do dia da Gloriosa Ressurreição de Jesus Cristo nosso Salvador,
que é a vida de nossas almas, e, no domingo em que a Santa Igreja
celebra com ramos, eles estavam todos de volta. Cada um trazia de volta
consigo o testemunho de sua própria consciência, sobre como havia
trabalhado durante o retiro, e as sementes que havia lançado em sua
alma, de maneira a torná-la forte e generosa para empreender novos
trabalhos para o serviço de Deus; e não se perguntavam jamais uns aos
outros, como já vos disse, como tinham vivido durante esse tempo de
separação e de solidão.
Eis a regra daquela casa, observada perfeitamente, e a
maneira pela qual cada um daqueles Solitários unia-se a Deus no deserto
e combatia contra si mesmo, de maneira a tornar-se agradável a Deus
somente, e não aos homens, sabendo que todas as coisas feitas por amor
aos homens e com o desejo de agradá-los, mais prejudicam do que servem,
àqueles que as executam.
Zózimo, tendo ido
durante a quaresma para o deserto com os outros Solitários, percebe a
figura de uma criatura humana, que fugia à sua presença, e segue-a até
um lugar cortado por uma torrente…
Segundo
o costume deste mosteiro, Zózimo passa o Jordão, levando somente seu
hábito e alguma coisa para viver. Assim, ele observava a regra e
atravessando aquela solidão, não comia senão quando a necessidade a isso
o obrigava. Deitava-se na terra, onde o surpreendesse a noite, para
repousar e dormir um pouco; e tão logo as primeiras luzes do dia
apareciam, apressava-se a caminhar tendo continuamente no espírito; como
contou mais tarde; o desejo de entrar mais adiante neste Deserto, com a
esperança de aí encontrar algum bom pai, de quem pudesse aprender
alguma coisa; e, sem cessar avançava ao acaso, como se estivesse em
direção à alguém que lhe fosse conhecido. Depois de ter caminhado
durante vinte dias, tendo chegada a hora das Sextas, parou um pouco, e
voltando-se para o Oriente fez sua prece normal, pois havia se
acostumado a parar em certas horas do dia e a cantar os Salmos de pé e a
fazer ajoelhado as orações.
Quando então cantava os Salmos, e com olhar fixo
mantinha os olhos elevados para o Céu, viu em sua mão direita algo como a
sombra de um corpo humano, o que o encheu primeiramente de espanto e
medo, por crer tratar-se de uma ilusão do diabo; mas tendo-se armado com
o Sinal da Cruz e tendo perdido toda a apreensão e chegado ao fim das
orações, viu, ao voltar os olhos, alguém que de fato andava na direção
do Ocidente. Ora, aquilo que via era uma mulher, cujo corpo o ardor do
sol havia tornado extremamente negro e cujos cabelos eram brancos como a
lã, mas tão curtos que iam somente até o pescoço.
Vendo isto, que acabo de relatar, e regozijando-se na
esperança de receber o consolo que esperava, Zózimo correu com todas as
suas forças ao lugar, onde aquilo que lhe aparecia apressava-se em ir,
pois sua alegria era muito grande; porque durante todo o tempo que havia
caminhado no deserto, não havia visto nenhuma forma nem de homem, nem
de bestas selvagens, nem de pássaros, nem de quaisquer animais, o que
aumentava seu desejo de saber o que é que lhe aparecia; esperando tirar
grande lucro disso. Ela porém, vendo Zózimo seguí-la, fugiu em direção
ao fundo do deserto. Esquecendo a fraqueza de sua idade e não
considerando o trabalho que lhe daria o caminho, ele correu em grande
velocidade, pelo desejo que tinha de ver mais perto, aquilo que fugia
dele; e assim correndo mais veloz que ela, aproximava-se cada vez mais.
Quando ele estava a uma distância que ela poderia
ouvir a sua voz, ele gritou-lhe chorando: “Serva de Deus, porque fugis
deste pecador e pobre velho? Quem quer que sejais, conjuro-vos pelo
Deus, pelo amor de quem passais vossa vida nesta horrível solidão, a
suportar-me; conjuro-vos pela esperança que tendes de ser um dia
recompensada de tantos trabalhos. Parai e não recuseis a nossa bênção e
nossas orações, àquele que vô-las pede em nome de Deus, que jamais
rejeitou ninguém .” Zózimo misturando assim suas conjurações às suas
lágrimas, chegaram ambos correndo a certo lugar, onde as águas de uma
torrente haviam cruzado, e então aquilo que fugia, desceu e subiu em
seguida de outro lado. Zózimo continuava gritando e não podendo passar
além, permaneceu aquém da torrente que estava seca, e redobrou de tal
maneira seus lamentos e suspiros que se podia escutá-los ainda muito
longe.
Aquilo que fugia diante de Zózimo para, após ter
atravessado a torrente, e diz-lhe que é uma mulher. Passam muito tempo a
pedir a benção um ao outro, e depois em oração Zózimo a vê suspensa no
ar.
Então
aquela pessoa que fugia disse-lhe: “Abade Zózimo, peço-vos em nome de
Deus perdoar-me, por não me voltar para falar convosco, pois sou uma
mulher e como podeis ver estou nua; mas, se desejais assistir com vossas
orações uma pobre pecadora, lançai-me vossa capa para que eu me cubra e
possa assim voltar-me para vós e receber a vossa bênção.” Zózimo ficou
tomado de um maravilhoso espanto misturado com temor e sentindo-se
transportado para fora de si mesmo ao ouvir estas palavras, pois, sendo
um homem excelente e que a graça de Deus havia dotado de muita
prudência, julgou que aquela mulher não o tendo jamais visto ou ouvido
falar dele, não o tivesse chamado por seu nome, sem uma graça particular
de Deus. Executou prontamente o que ela havia ordenado, e após haver
desabotoado sua capa lançou-a, virando-se de costas. Tendo-a recebido,
ela cobriu-se a maior parte do corpo, e assim envolvida voltou-se para
Zózimo e lhe disse: “Meu pai, que desígnio trouxe-vos a ver uma
pecadora, e o que desejais saber e aprender de mim, para não temer tanto
trabalho, quanto tivestes que sofrer para vir até aqui?”
Prostando-se por terra Zózimo pediu-lhe a bênção,
como é costume fazer, e ela, prostrando-se por sua vez, pediu-lhe a sua
também.
Permaneceram muito tempo assim e por fim ela lhe
disse: “Meu pai, cabe a vós dar-me a benção e fazer a oração, visto que
sois honrado pelo Presbiterado, e que há tantos anos servindo ao Santo
Altar, penetrais pela graça e pela luz que Deus vos dá, nos segredos e
mistérios de Jesus Cristo.” Estas palavras aumentaram o temor e a emoção
de Zózimo e via-se tremer esse santo ancião e correr o suor em grandes
gotas pelo seu rosto. Assim, não tendo mais forças e como se estivesse
prestes a dar o último suspiro, ele lhe disse: “Ó mãe espiritual, te
conheço o bastante pelo pouco que vi, pois estais toda com Deus e que
quase não vives mais na terra; e posso crer que Ele vos concedeu dons
muito extraordinários; pois, sem terdes jamais me visto, chamastes-me
pelo meu nome; mas visto que na dignidade das funções onde se é chamado,
não acontece que tenhamos uma graça igual ao cargo que temos de
exercer, e que esta graça se conhece principalmente pelos efeitos
maravilhosos que produz nas almas, abençoai-me pelo amor de Deus, e
assisti-me com vossas orações, a fim de tornar-me um digno de imitar a
vossa virtude.”
Então, compadecendo-se da teimosia do santo ancião,
ela diz: “Bendito seja o Senhor que opera a salvação das almas.” Ao que
Zózimo respondeu: “Assim seja” e levantaram-se os dois e ela disse-lhe:
“Quem, então, vos trouxe até uma pecadora como eu? De todo o modo, já
que o Espírito Santo vos conduziu até aqui por Sua graça, a fim de
prestar-me alguma assistência à minha fraqueza, dizei-me, suplico-vos,
de que maneira se conduzem os cristãos hoje; de que maneira agem os
imperadores; e de que maneira o rebanho de Jesus Cristo é agora
governado na Santa Igreja?” Zózimo respondeu: “Minha mãe, Deus concedeu
às vossas santas orações uma paz, concedida aos fiéis. E não recuseis,
suplico-vos em Seu nome, a um bastante indigno Solitário; o consolo que
vos peço pelo amor dc Jesus Cristo por todo mundo, e particularmente
para este pobre pecador, a fim de que, não tenha feito inutilmente um
tão longo e laborioso caminho através desta vasta solidão.” Ela
repondeu-lhe: “Meu pai, já vos disse que cabe a vós honrado com o
Sacerdócio, orar a todo mundo e por mim também, visto ser uma das
funções, às quais a vossa vocação vos obriga; visto que a obediência é
uma das coisas que nos são mais recomendadas, farei de bom grado aquilo
que me ordenares.”
Concluindo estas palavras, ela se voltou para o
oriente e elevando os olhos ao céu e estendendo as mãos, começou a
rezar, mexendo somente os lábios e sem que se pudesse ouvir sequer uma
de suas palavras. Como mais tarde relatou, Zózimo ficou bastante
espantado e, sem dizer nada, baixou o olhar contra a terra, depois vendo
que ela continuava longamente em oração, levantou os olhos e viu que
ela elevava-se um côvado da terra e que orava assim suspensa no ar;
aquilo que tinha Deus por testemunho era muito verdadeiro. Então
sentiu-se repleto de uma tão extrema apreensão, empapado de suor
jogou-se no chão, sem ousar partir e dizia somente consigo: “Senhor, tem
piedade de mim.”
Vendo Zózimo aquela mulher suspensa no ar, temeu
tratar-se de um demônio. Então ela lhe diz qual havia sido o pensamento
dele e ele a conjura, em seguida, a contar-lhe toda a história de sua
vida.
Como
ele estava neste estado, veio-lhe uma tentação, de que talvez fosse
algum espírito maligno fingindo rezar. Então, a mulher voltando-se para
ele e reanimando-o, disse-lhe: “Porque, meu pai, vossos pensamentos vos
levam a escandalizar-vos a propósito de mim, fazendo-vos crer que não
sou senão um espírito e que minha oração não é senão fingimento? Não
duvideis de que sou uma mulher e uma pobre pecadora; mas tal como sou,
recebi o Batismo, e bem distante de ser um espírito não sou senão pó e
cinza, senão carne, e não tenho ao menos espírito para conceber as
coisas espirituais.” Concluindo estas palavras ela fez o Sinal da Cruz
sobre a sua fronte, sobre os seus olhos, sobre os seus lábios e sobre o
seu estômago, e acrescentou: “Meu pai, Deus nos livra se quiser do
demônio, e de tudo o que vem dele, que de nós tem sem dúvida, muita
inveja.”
A estas palavras o ancião prostrou-se a seus pés e
disse-lhe chorando: “Conjuro-vos por Nosso Senhor Jesus Cristo, nosso
verdadeiro Mestre, que por nossa salvação dignou-se nascer dc uma Virgem
e pelo amor de quem estais revestida desta nudez e fizeste sacrifício
de vosso corpo para Lhe serdes agradável, não escondais nada,
suplico-vos, ao vosso servo, mas dizei-me quem sois, de onde vinde,
quando e por que razão viestes para esta solidão, e de maneira geral,
sobre todas as coisas que vos dizem respeito; a fim de que, eu conheça
assim a grandeza das obras de Deus, pois que benefício pode trazer um
tesouro escondido e uma ciência não declarada, assim como diziam as
Escrituras? Dizei-me, então, sem escrúpulos, todas as coisas pelo amor
de Deus, pois não será por vaidade mas para satisfazer este pobre
pecador ainda que ele seja indigno disso. E tomo como testemunha o mesmo
Deus para quem vivcs somente, e com quem conversais continuamente, e
não creio ter sido trazido para esta solidão, senão pelo desejo Dele de
tornar manifesto, tudo o que se passou convosco, visto que não está em
nosso poder resistir às Suas vontades, e que se nosso Senhor Jesus
Cristo não tivesse desejado fazer-vos conhecer e fazer saber os combates
que empreendestes em Seu serviço, Ele não teria jamais permindo que
alguém vos tivesse visto, e na fraqueza em que me encontrava que mal me
permitia sair de minha cela, Ele não me teria dado forças para fazer com
tanta diligência um tão longo caminho.”
Falando assim e acrescentando várias coisas
semelhantes, aquela mulher disse-lhe: “Perdoai-me, meu pai, se morro de
vergonha de vos deixar ouvir qual foi a infâmia de minhas ações.
Entretanto como vistes que eu estava nua, descobri-las-ei também
completamente, para que conheçais a força com que as minhas impurezas
encheram a minha alma de confusão e vergonha. E estou longe, como
dissestes, de querer contar, por algum sentimento de vaidade as coisas
que me concernem; pois de que me poderia glorificar tendo sido um vaso
de eleição não de Deus, mas do diabo? E estou certa de que assim que
começar a vos fazer ouvir toda a história de minha vida, vós fugireis de
mim como de diante da serpente e vossos ouvidos não quererão escutar os
inúmeros crimes que cometi. Contudo contá-los-ei com verdade e sem nada
disfarçar, após vos ter suplicado não interromper nunca as orações por
mim, a fim de que me torne digna da misericórdia de Deus e que eu a
receba no dia do julgamento.” O ancião, com estas palavras, derramou
muitas lágrimas e ela começou então, a sua narrativa.
Santa Maria do Egito começa a contar a Zózimo a
história de sua vida e diz-lhe como ela passou dezessete anos inteiros
em horríveis crimes; e como foi a Jerusalém para ver a cerimônia da
Exaltação da Santa Cruz.
Meu
pai, meu país é o Egito. Estando meu pai e minha mãe ainda vivos, parti
com 12 anos contra a vontade deles para Alexandria, onde não consigo
pensar sem enrubescer que perdi primeiramente a honra e deixei-me levar
pelo desejo contínuo e insaciável da volúpia infame e criminosa.
Precisaria de muito tempo para dizer tudo em pormenores, mas dir-vos-ei
tudo o mais breve que puder e tanto quanto seja necessário, para vos
fazer saber, como era o ardor excessivo que me consumia no pecado.
Permaneci publicamente durante mais de dezessete anos neste abrasamento
funesto, e não foi absolutamente por causa de presentes, que deixei de
ser virgem, pois recusava tudo o que me ofereciam; o furor que me
agitava e que me levava a um tamanho excesso, fazia-me julgar que
haveria muito mais urgência, quando eu não desejava absolutamente outra
recompensa pelo pecado, senão o próprio pecado. Mas, não vos espanteis
por eu me preocupar tão pouco com o dinheiro, visto que, eu queria viver
de esmola ou daquilo que roubava, tanto que, como já vos disse, eu não
tinha outra paixão senão mergulhar continuamente na lama das minhas
impudências. Esta era a única coisa que me agradava e acreditava que era
verdadeiramente viver, o abusar assim incessantemente do corpo que Deus
me dera.
Como vivia ao acaso, vi um certo dia de verão um
grande número de egípcios e líbios que corriam na direção do mar. Tendo
perguntado ao primeiro que encontrei: “Para onde correm eles com tanta
pressa!” Ele respondeu-me: “Vão para Jerusalém para a Exaltação da Santa
Cruz, que como de costume deve ser celebrada dentro de alguns dias.”
“Crês ,” perguntei-lhe, “que eles me aceitariam se eu quisesse ir com
eles?” “Isto é simples,” respondeu-me, “se tivesses os meios de pagar a
passagem.” “Com certeza,” repliquei, “não tenho com que pagar a
passagem, nem como pagar as minhas despesas, mas não deixarei de ir,
subirei no navio que eles alugaram e se recusarem a me receber,
dar-me-ei eu mesma como dinheiro, e tendo desta forma meu corpo em seu
poder, me receberão como pagamento. Ora, o que me fazia desejar ir com
eles; perdoai-me meu pai o que ouso dizer; era ter muitos cúmplices para
o meu furor.
Disse-vos bastante meu pai, sofrei, suplico-vos, e
ficarei por aqui; não me obrigueis a continuar a relatar aquilo que me
cobre de tão estranha confusão. Pois Deus sabe que eu não poderia falar
disso sem tremer, e parece-me que todas as minhas palavras são como
manchas, que sujam a pureza do ar onde ecoam.” Zózimo respondeu-lhe,
regando com suas lágrimas a terra: “Em nome de Deus, minha mãe,
continuai e não omitais nada de uma tão difícil narrativa.” Ela
continuou então:
“Aquele jovem foi-se indo com a resposta que eu lhe
havia dado, e eu, jogando fora o fuso que trazia na mão e do qual de
tempos em tempos servia-me para viver, corri na direção do mar como os
outros, e vi em pé na margem nove ou dez jovens cujos rostos e porte
agradaram demasiadamente à minha paixão desregrada. Haviam outros também
que já tinham subido ao barco, e jogando-me no meio deles
despudoradamente como de costume, disse-lhes: recebei-me convosco nesta
viagem, e não serei cruel demais convosco. Ao que acrescentando outras
palavras mais livres e piores que estas, fi-los rir a todos. Aquelas
pessoas percebendo o meu descaramento, pegaram-me e levaram-me num
pequeno barco e então começamos nossa navegação.
Ó servo de Deus, como poderia eu contar-vos o que
aconteceu em seguida? Que língua pode proferir e que ouvidos escutar,
aquilo que se passou naquele pequeno barco durante o caminho, e de que
maneira eu incitava ao pecado, aqueles miseráveis que não queriam
cometê-lo? Não há palavras que possam representar a imagem detestável,
dos crimes em que eu me mostrava tão sábia, e que fiz, com que aqueles
pobres miseráveis cometessem. Contentai-vos portanto, meu pai, com que
vos diga que não me espantaria, que o mar pudesse sofrer pelas minhas
iniquidades e que a terra se abrisse, para me fazer descer viva ao
inferno, eu que fazia caírem tantas almas nas redes da morte. Mas Deus,
que não deseja a perda de ninguém e que quer que todos sejam salvos,
pedia com certeza que eu fizesse penitência; pois Ele não quer a morte
do pecador, mas espera a sua conversão com paciência impar.
Fomos assim para Jerusalém e empreguei todos os dias
que aí permaneci antes da festa, em ações tão detestáveis quanto as
anteriores, e ainda piores, pois não me contentando com o mal que fazia
no mar com aqueles jovens, fiz ainda perderem-se muitos outros, tanto da
cidade quanto os de fora, aos quais eu solicitava tomarem parte de
minhas impudências.
Continuação da narrativa da Santa, contendo a sua
conversão milagrosa, acontecida no dia da Festa da Exaltação da Santa
Cruz e, como ela foi à Igreja de São João Batista onde comungou.
Quando
chegou a festa gloriosa da Exaltação da Cruz de Nosso Senhor, eu
prosseguia como antes no desejo de perder as almas dos jovens e, tão
logo o dia começou a despontar, vendo que todos corriam para a igreja,
corri também como os outros, e fui com eles à praça que ficava diante do
Templo. Na hora da cerimônia, esforçava-me para avançar. Enfim, com
extrema dificuldade cheguei à porta da igreja, mas quando quis entrar
como faziam todos os outros sem nenhuma dificuldade, era impedida por um
poder divino que me repelia para fora, e assim miserável que estava,
encontrei-me sozinha naquela praça diante da igreja. Imaginando que isso
provinha de minha fraqueza, lancei-me de novo entre aqueles que
acabavam de chegar, e esforçando-me com todo o meu poder para entrar com
eles, trabalhava sempre inutilmente.
Tão logo eu tocava a soleira da porta, pela qual
todos os outros entravam sem dificuldade, eu era a única rejeitada; e
como se houvesse uma multidão de soldados que tivessem ordem de
fechar-me a entrada da igreja, eu sentia de repente um poder escondido
que fazia o mesmo efeito, e de novo encontrava-me na praça como antes.
Tendo acontecido assim três ou quatro vezes, e vendo
que todos os meus esforços eram inúteis, desesperava-me para poder
entrar, e não tendo mais quase força para sustentar-me, tanto que meu
corpo havia sido imprensado, retirei-me para um canto daquela praça,
onde comecei enfim a considerar, qual poderia ser a causa, que me
impedia de ver aquele santo madeiro, sobre o qual um Deus morreu para
dar a vida aos homens; e um pensamento salutar tendo-me sacudido o
espírito e aberto os olhos de minha alma, julguei que a abominação de
minha vida, era o que me fechava a entrada do templo. Então, inundada de
lágrimas e bastante perturbada, dei socos no estômago, dei grandes
suspiros do mais profundo do coração, e misturando meus gritos com
soluços, percebi acima de mim uma imagem da Santa Mãe de Deus.
Dirigindo-me logo a ela e olhando-a fixamente eu
disse-lhe: “Santa Virgem, que concebeste segundo a carne um Deus todo
poderoso, sei que não parece que, estando eu imunda como estou por causa
de tantos crimes, eu ousaria adorar a vossa imagem e lançar os olhos
sobre vós, que sois uma Virgem muito pura e cuja alma assim como o corpo
estão isentos de toda mancha; mas que ao contrário, é bastante justo
que vossa incomparável pureza tenha horror de uma pessoa tão abominável
quanto eu. Entretanto, já que aprendi que este Deus a quem foste digna
de carregar em vosso seio, fez-Se homem para chamar os pecadores à
penitência, suplico-vos que me assistais no abandono de socorro em que
estou. Recebei a confissão que vos faço de meus enormes pecados, e
permiti-me entrar na igreja, afim de que não seja tão infeliz, por ser
privada da visão do madeiro precioso onde Deus-homem, que concebeste
permanecendo virgem, foi pregado e derramou Seu sangue pela minha
salvação. Ordenai, Rainha do Céu, ainda que eu seja indigna, que a porta
me seja aberta para adorar a Divina Cruz, e dou-vos por caução o mesmo
Jesus Cristo que deste ao mundo; que não me aconteça jamais no futuro
cair nas detestáveis impurezas com a qual sujei meu corpo; corpo este,
que deveria ter cuidado para conservá-lo casto, e tão logo tenha visto o
santo madeiro onde vosso filho quis sofrer por nós, renunciarei ao
mundo e a todas as coisas que vem dele, e partirei na mesma hora para ir
ao lugar que vos aprouver levar-me, ó Virgem Santa, como minha caução e
meu guia.”
Tendo concluído estas palavras e o ardor da fé, que
já começava a sentir no coração dando-me algum consolo, e fazendo-me ter
confiança na bondade tão terna e tão caridosa da Mãe de Deus, parti do
lugar onde havia feito a minha oração, e misturando-me àqueles que iam à
igreja, não encontrei mais nada que me repelisse nem que impedisse a
minha entrada. Então, fui tomada por um tremor como transportada fora de
mim; todas as coisas espantavam-me, e os obstáculos que antes encontrei
haviam cessados, e aquele poder secreto que me repelia, parecia agora
facilitar-me a entrada; cheguei sem nenhuma dificuldade até o coração da
igreja, onde recebi a graça de adorar o precioso madeiro da Cruz
gloriosa, que dá a vida aos homens.
Conhecendo assim, o incompreensível excesso da
misericórdia de Deus, e como Ele está sempre pronto para receber os
pecadores na penitência, joguei-me na terra e após haver beijado o santo
chão da igreja, sai e corri para Aquela que havia me respondido. Tendo
chegado ao lugar onde minha promessa estava escrita, ajoelhei-me diante
da imagem da Santa Virgem e dirigi-Lhe a minha oração desta maneira:
“Muito misericordiosa Mãe de Deus, fizestes-me ver os efeitos da vossa
incomparável bondade, visto que não rejeitastes minha humilde súplica
ainda que indigna de ser ouvida. Vi a glória que os maus são justamente
privados de ver, a glória de Deus todo poderoso, que por vossa
intercessão recebe a penitência dos pecadores. Mas, miserável que sou,
que necessidade há de lembrar-me e de falar mais sobre meus crimes? É
tempo, Virgem Sagrada, de realizar com vossa assistência aquilo que vos
prometi. Envia-me então, onde vos aprouver, sede meu guia no caminho da
minha salvação; instrui-me na verdade; e mostrai-me a via que conduz à
penitência.” Falando assim, ouvi uma voz como de alguém que me chamava
de muito longe: “Se passares o Jordão, encontrarás um feliz repouso.”
Escutando estas palavras e acreditando que eram ditas para mim, gritei
chorando e olhando a imagem da Virgem: “Rainha do Universo, por quem a
salvação chegou aos homens, não me abandoneis, suplico-vos.” Depois
destas palavras saí daquele lugar e fui-me com grande pressa. Alguém que
me viu, deu-me três peças de dinheiro e disse-me: “Recebei isto.”
Tomando-as comprei três pães para a viagem que ia empreender com a graça
de Deus, e tendo pedido ao padeiro o caminho do Jordão, soube por ele,
por qual porta da cidade deveria sair, e fui-me então correndo e
chorando.
Empreguei assim o resto do dia fazendo sem cessar,
reflexões sobre mim mesma. Ora, era por volta da terceira hora do dia,
quando tive a felicidade de ver a Santa e Preciosa Cruz de Nosso
Salvador; e o sol estando prestes a se pôr, percebi a Igreja de São João
Batista, que assentava-se ao longo do Jordão. Fui logo para o rio e
lavei as mãos e o rosto com aquela água santa, e voltei para a sua
igreja onde recebi o precioso Corpo de Nosso Senhor Jesus Cristo, que dá
a vida às almas. Depois, tendo comido a metade de um dos meus pães e
bebido a água do rio, descansei a noite na terra.
Continuação da narrativa da Santa, contendo a maneira
pela qual ela cruzou o Jordão para ir ao deserto, onde permaneceu 47
anos. E de que modo viveu durante este tempo.
Tendo
chegado a alvorada, passei para o outro lado do Jordão e lá pedia ainda
à Santa Virgem como meu guia, que me conduzisse ao lugar que lhe
agradasse; e cheguei assim nesta solidão onde desde aquele tempo até
hoje afasto-me cada vez mais, o quanto posso, evitando o encontro com
quem quer que seja, e esperando a vinda do meu Deus, que salva os
pequenos e os grandes que a Ele se convertem.”
Então Zózimo lhe disse: “Minha mãe, há quantos anos
estais nesta solidão!” Ela respondeu: “Segundo os cálculos que fiz, há
47 anos saí da Cidade Santa.” “E o que encontrastes desde então e o que
podeis encontrar ainda todos os dias,” retorquiu Zózimo, “com que vos
possais alimentar?” Ela replicou: “Quando cruzei o Jordão, tinha ainda
dois pães e meio, que logo ressecaram e ficaram duros como pedras, e
durante alguns anos comia um pouco de cada vez”: Zózimo lhe disse:
“Pudestes passar assim tanto tempo sem sofrer muitas penas e sentir
muitas perturbações em vosso espírito, por tão grande mudança?”
“Fazeis uma pergunta,” disse ela, “à qual não saberia
responder, sem tremer pela lembrança de tantos perigos, que pela minha
maldade fizeram agitar demais a minha alma; pois temo que relatando-os,
eles me inquietem ainda.” “Dize-me, eu vos suplico, minha mãe”,
respondeu-lhe Zózimo, “sem esquecer coisa alguma, pois tendo Deus
querido que vós me conhecesseis, não deveis esconder-me nada.”
Então ela retomou a palavra: “É verdade, meu pai, que
passei dezessete anos combatendo sempre contra desejos violentos,
importunos e despropositados quando começava a comer; pois desejava
carne, lamentava os peixes do Egito, e desejava muito vinho, do qual
gostava tanto e que no mundo bebia em excesso ao ponto de perder a
razão; no lugar onde me encontrava, então, sem haver uma gota d’água
somente, o que acendia em minhas veias uma sede tão ardente, que me
reduzia à extremidade. Também morria de vontade de cantar aquelas
canções dissolutas, que são canções do diabo, que havia aprendido pela
vida, e que voltando à memória enchiam meu espírito de perturbação; mas,
de repente, começando a chorar e batendo-me no estômago,
representava-me a promessa tão solene que havia feito, ao vir para esta
solidão e em espírito punha-me diante da imagem da Santa Mãe de Deus que
me tinha sob sua proteção, suplicava-lhe em lágrimas que afastasse de
mim estes pensamentos que tanto afligiam a minha alma. Muito cheia de
dor, depois de ter chorado extremamente e mortificado-me com golpes, via
depois uma luz e meu espírito voltava à calma.”
“Perdoai-me, meu pai, se não vos posso contar em
detalhes todos os pensamentos, que me agitavam ainda por levarem-me no
desejo do pecado. Sentia-me queimar com um ardor infeliz, que me
arrastava, como à força, no desejo de cometê-lo; mas quando estas
tentações me perseguiam, prostrava-me contra a terra, regava-a com
minhas lágrimas e acreditando ver verdadeiramente diante de meus olhos,
Aquela que havia respondido por mim, parecia-me que ela me reprovava com
ameaças o excesso de fúria que me agitava e que, cheia de cólera, me
fazia ver quais seriam os castigos assustadores pela minha horrível
infidelidade; e não me levantava nunca, senão depois que aquela luz tão
doce e tão favorável me houvesse iluminado como antes e banido estas
perturbações de meu espírito. Era assim que eu elevava incessantemente o
meu coração para aquela Santa Virgem, que carregava em Seu seio o Autor
da castidade, e que eu havia tomado como minha caução para com Deus,
suplicando a Ela que me assistisse naquela solidão e em minha
penitência; ao que Ela jamais faltou.”
“Eis aí meu pai, como passei estes dezessete anos em
um combate perpétuo, contra tantas tentações e perigos. E, desde então,
esta feliz Mãe de Deus que é todo o meu recurso e todo o meu auxílio
nunca me abandonou, e serviu-me de guia em geral em todas as coisas.”
Então Zózimo disse-lhe: “De que vos alimentastes e
vestistes?” Ela respondeu: “Aqueles pães como vos disse duraram
dezessete anos; e depois disto vivi das ervas que encontrei no deserto.
Quanto às roupas, as que tinha quando cruzei o Jordão tendo-se estragado
completamente, sofri muitas penas; o ardor excessivo do verão
queimando-me e os frios insuportáveis do inverno reduzindo-me a um tal
estado, que traspassada e tremendo, caía frequentemente no chão e
permanecia como morta sem poder me mexer, combatendo assim, contra
tantas necessidades e tentações diversas. Mas, no meio destas penas, o
poder de Deus, de mil diferentes maneiras, conservou até hoje o meu
corpo e a minha alma; e repassando em meu espírito de que males o Senhor
me livrou, alimento-me de uma carne que não me falta jamais, e estou
saciada pela esperança que tenho de minha salvação. A palavra de Deus
que contém todas as coisas, serve-me também de alimento e de abrigo.
Pois o homem não vive do pão somente. E quando àqueles, que são
despojados dos afetos do pecado, faltam vestes, encontram rochedos que
os cubram.”
Conclusão do discurso da Santa e de Zózimo, a quem
ela obriga a vir trazer-lhe em um ano, a Santa Eucaristia; e depois
separar-se dele.
Zózimo,
vendo que ela citava passagens das Santas Escrituras, tiradas dos
livros de Moisés, de Jó, e dos Salmos, disse-lhe: “Minha mãe,
aprendestes os Salmos e lestes outros livros das Sagradas Escrituras?”
Ela respondeu sorrindo: “Asseguro-vos, que desde que passei o Jordão
para vir a este deserto, não vi outro homem do mundo senão a vós, nem
encontrei nenhuma besta selvagem, nem nenhum outro animal. Também não
aprendi, nem nunca escutei alguém que cantasse os Salmos ou os lesse;
mas a palavra de Deus que é viva e eficaz, penetrando fundo no espírito
humano, o instrui e ensina-lhe de maneira bastante particular. Agora,
tendo acabado de prestar-vos conta daquilo que me concerne, conjuro-vos
pela Encarnação do Verbo Eterno, que oreis por mim, pois sabeis que
tenho cometido muitos crimes.”
A estas palavras, o ancião pôs-se de joelhos e
prostrou-se contra a terra dizendo em voz alta: “Bendito seja o Senhor,
que sozinho, faz maravilhas inumeráveis, tão grandes, tão admiráveis e
tão gloriosas, que enchem o espírito de espanto. Bendito sede vós, meu
Deus, que me fizestes ver hoje quais são os favores, com os quais
cumularás aqueles que vos temem. Ó Senhor, é bem verdade que não
abandonais nunca as pessoas que vos procuram.” A Santa tomando-o pela
mão não lhe permitiu continuar por mais tempo contra a terra, e disse,
levantando-o: “Conjuro-vos por Jesus Cristo nosso Salvador não contar a
quem quer que seja, as coisas que vos disse, até que Deus me tenha
libertado da prisão de meu corpo; conservai sob o selo do segredo, e com
a graça de Deus rever-me-eis ainda no ano que vem, na mesma época em
que estamos. Peço-vos também em Seu nome para faltar com aquilo que vos
pedi, que na próxima Quaresma não passeis o Jordão segundo o costume do
mosteiro onde estais.” Zózimo assombrado de ver que ela sabia deste
costume e que ela falava disso como uma pessoa informada a este
respeito, clamava sem cessar: “Glória seja dada a Deus, que concede
àqueles que o amam, muito mais do que eles Lhe pediram.”
Ela continuou assim: “Meu pai, não saiais,
suplico-vos, durante este tempo do mosteiro, de onde, quando quiserdes
não estará em vosso poder sair, e na noite da Santíssima Ceia de Nosso
Senhor, trazei-me num vaso sagrado e digno de tão grande mistério, o
divino corpo e sangue vivificante de nosso Salvador e esperai-me do lado
do Jordão, que encontra os países habitados pelas gentes do mundo, a
fim de que quando eu chegar, receba estes ricos presentes que dão a vida
aos fiéis. Pois, desde que comunguei na igreja do bem-aventurado
Precursor antes de passar o Jordão, nunca mais recebi este Santíssimo
alimento; o que me faz conjurar-vos com tanta insistência a que não
recuseis meu pedido, mas trazei-me, peço-vos, o Divino Sacramento que é a
vida de nossas almas; à mesma hora que Nosso Senhor criando-Os com Seus
discípulos, tornou-os partícipes. Dizei a João, abade do mosteiro onde
permaneceis, que vele por si mesmo e por seu rebanho, porque passam-se
coisas lá, que precisam de correção. Entretanto não desejo que lhe deis
este aviso presentemente, mas quando Deus vô-lo ordenar.”
Tendo acabado de proferir estas palavras e pedido a bênção do santo ancião, foi-se rapidamente para o fundo do deserto.
Tendo passado um ano, Zózimo levou a Santa Eucarístia
à Santa Maria do Egito, e ela comungou. Depois, ela pediu-lhe para
voltar no ano seguinte ao mesmo lugar, onde ela pela primeira vez tinha
falado com ele.
Zózimo
jogando-se no chão beijou o rastro dos passos da Santa, e depois voltou
glorificando a Deus e prestando-Lhe infinitas ações de graça. Passando
pelo mesmo caminho que havia feito no deserto, ele voltou ao mosteiro no
mesmo tempo que os outros, e permaneceu todo o ano seguinte no
silêncio, não ousando falar daquilo que havia visto; mas orava a Deus
que lhe permitisse ver ainda aquela pessoa, por quem tinha tanto
respeito e tanta admiração, e o tempo custava tanto a passar, que ele
suspirava pensando no quanto este ano era longo.
Quando chegou a época do Santo Jejum e os outros
Solitários depois da oração costumeira, saíram no primeiro Domingo da
Quaresma cantando os Salmos, ele foi impossibilitado de ir, por uma
febre que o obrigou a permanecer no mosteiro. Então lembrou-se do que a
Santa lhe havia dito, que mesmo que quisesse, ele não poderia sair de
lá, e alguns dias mais tarde foi aliviado de sua indisposição. Voltando
os Solitários, ele realizou o que lhe havia sido ordenado, colocando em
um pequeno cálice o Corpo e Precioso Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo
e levou também dentro de uma cesta de vime alguns figos, damascos e
lentilhas embebidos em água. Depois chegando a noite, sentou-se à beira
do Jordão para esperar a Santa, não se deixando adormecer, pois que ela
tardava a chegar; mas olhava atentamente para o lado do deserto à espera
do que desejava tanto ver, e dizia: “Não teria ela vindo, e não
tendo-me encontrado, teria retornado, então?” Acompanhava suas palavras
com lágrimas, e erguendo os olhos para o céu com ardor, fazia esta
oração: “Meu Deus, não me recuseis ver ainda aquela que já me
concedestes o favor de vê-la; mas temo, que os meus pecados me tornem
indigno de receber esta graça.”
Assim orando e chorando, ocorreu-lhe um outro
pensamento, e dizia consigo: “Mas se ela vier, o que fará? Como passará o
Jordão para vir a mim pobre pecador, já que não há aqui nenhum barco?
Ai! Infeliz que sou, quem me terá feito perder a felicidade, que eu
tinha tanto motivo para esperar?” Estando o ancião assim, a Santa chegou
e ficou do outro lado do rio. Zózimo, ao vê-La, levantou-se, e
transportado pela alegria dava graças a Deus. Mas como ele estava sempre
em extrema inquietação de como ela poderia passar o Jordão, ele a viu
fazer o Sinal da Cruz sobre o rio (pois a lua estava então cheia e seus
raios tornavam a noite extremamente clara) e em seguida caminhar sobre
as águas como se estivesse em terra firme, o que o espantou de tal
maneira que quis ajoelhar-se, mas ela impediu-o gritando: “Que fazeis,
meu pai? Não vos lembrais de que sois padre de Deus e que levais os
Divinos Mistérios?” Ele obedeceu a estas palavras, e ela, após ter
passado o rio, disse-lhe: “Meu pai, dai-me a vossa bênção.” Ao que ele
respondeu ainda sob a impressão extrema que lhe havia causado tamanho
milagre: “Em verdade Deus é bastante fiel, quando promete tornar
semelhante a Ele, aqueles que se purificam com tanto zelo pelo Seu amor.
Meu Deus e meu Mestre, sede glorificado para sempre, por aquilo que me
fizestes ver na pessoa de vossa serva, o quanto estou longe da
verdadeira perfeição.” Ela pediu-lhe em seguida que recitasse o Símbolo e
começasse a Oração Dominical. Quando terminou, segundo o costume, a
Santa deu ao ancião o beijo da paz e depois recebendo o Santíssimo
Sacramento estendeu as mãos para o Céu, e misturando seus suspiros às
suas lágrimas, proferiu em voz alta: “Senhor, permiti agora à vossa
serva, segundo a vossa Divina Palavra, partir em paz, pois meus olhos
viram o meu Salvador,” e voltando-se para o ancião disse-lhe:
“Perdoai-me, meu pai, o mal que vos causei, e concedei-me ainda este
outro pedido: voltai agora sob a condução de Deus para vosso mosteiro, e
quando o tempo estiver terminado, ide à torrente, onde vos falei pela
primeira vez; mas, em nome de Deus, não falteis, e ver-me-eis então da
forma que Ele quiser.” O ancião respondeu-lhe: “Aprouve a Deus que
estivesse em meu poder seguir-vos e gozar da felicidade da vossa
presença. Mas, suplico-vos, minha mãe, não recuseis um pequeno pedido
que tenho para vos fazer: que queirais comer alguma coisa, daquilo que
vos trouxe.” Então ela tomou somente 3 grãos de lentilha, os colocou na
boca dizendo, que a graça do Espírito Santo era suficiente para
conservar a alma na pureza, e acrescentou dirigindo-se ao ancião:
“Rogo-vos, meu pai, em nome de Deus, orai por mim e não esqueçais nunca
as minhas misérias.” Zózimo beijando seus pés santos, conjurou-a a rezar
pela Igreja, pelo Império e por ele. E chorando e suspirando, deixou-a
partir, pois não ousava retê-la mais e mesmo que quisesse não teria
conseguido.
Zózimo indo ao lugar onde a Santa lhe havia indicado, encontra-a morta e a enterra. Conclusão de todo este discurso
A
Santa fez ainda o Sinal da Cruz sobre o Jordão e depois caminhando sobre
as águas, atravessou-o da mesma forma que havia feito ao vir, e Zózimo
voltou cheio de alegria e espanto, e com pena, por não ter-lhe
perguntado seu nome. Mas esperava consertar este erro no ano seguinte. E
quando este ano foi concluído e os costumes ordinários do mosteiro
tendo sido observados, ele voltou ao deserto que está para além do
Jordão, e caminhava com muita pressa pelo desejo de gozar da felicidade
de rever aquela gloriosa Santa. Mas, avançando naquela imensa solidão, e
olhando e procurando de todos os lados encontrar alguma marca, que o
conduzisse ao lugar onde desejava com tanto ardor chegar; como fazem os
caçadores para encontrar os animais que querem caçar; enfim não vendo
nenhum vestígio, encharcou de lágrimas o seu rosto e disse erguendo os
olhos para o céu: “Muito humildemente eu vos suplico, meu Deus, ver este
Anjo em corpo mortal, ao qual o mundo inteiro não é digno de ser
comparado.”
Tendo terminado esta oração, chegou à torrente; e
como todo o alto deste lugar, estava iluminado pelos raios do sol, ele
percebeu na terra o corpo morto da Santa, cujo rosto estava voltado para
o oriente e as mãos cruzadas. Correu logo para lá, lavou seus pés com
suas lágrimas sem ousar tocar nenhuma parte de seu corpo. Tendo em
seguida cantado os Salmos e recitado as orações costumeiras em ocasiões
semelhantes, disse consigo: “É possível que a Santa não se agradasse
daquilo que faço.” Como estava nestes pensamentos, viu estas palavras
escritas na terra: “Meu pai Zózimo, enterrai o corpo da miserável Maria,
devolvei a terra o que é da terra, pó ao pó. Em nome de Deus, orai por
mim, neste décimo dia de Abril, na véspera da Paixão de Jesus Cristo
Nosso Salvador e após ter sido tornada partícipe de Seu Santíssimo e
Divino Corpo.”
Tendo lido estas palavras, o ancião pensava consigo
quem poderia tê-las escrito, visto que a Santa havia-lhe dito que ela
não sabia escrever, e tivera uma extrema alegria por desta maneira ter
sabido o seu nome. Ele soube desta forma, que no instante em que ela
recebera o Santo Sacramento à beira do Jordão, viera para aquele lugar e
passara ao Céu; e que assim ela havia feito em um momento, o mesmo
caminho em que ela havia empregado 20 dias inteiros caminhando sem
parar. Este bom ancião tendo prestado infinitas ações de graças a Deus e
encharcado com seu pranto o corpo da Santa, pôs-se a dizer: “É tempo,
Zózimo, de executar o que te foi ordenado. Mas infelizmente como farei,
pois não tenho como cavar a terra, nem pá nem coisa alguma.” Enquanto
falava ao acaso, viu um pequeno pedaço de madeira e tomou-o, e começou a
tentar abrir a terra; mas era tão dura, e ele tão extremamente fraco
por conta de seus jejuns e com o caminho tão longo, que foi-lhe de todo
impossível. Então, encharcado de suor do esforço que havia feito
inutilmente, deu profundos suspiros, e levantando os olhos percebeu
junto ao corpo da Santa um enorme leão, que lhe lambia os pés, o que o
encheu primeiramente de um maravilhoso pavor e principalmente porque a
Santa lhe havia dito, não ter jamais visto nenhum animal selvagem
naquele deserto. Mas assegurou-se pelo Sinal da Cruz e pela fé, que
aquele santo corpo poderia protegê-lo de todo o perigo. E o Leão começou
a fazer-lhe carícias como para saudá-lo. Então Zózimo disse-lhe: “Rei
dos animais, já que Deus enviou-te aqui, a fim de que o corpo de Sua
serva não permaneça insepulto, cumpre o teu encargo, dando-me os meios
de colocá-lo na terra; pois além de minha velhice que me tira a força de
cavar, não há nada aqui que seja apropriado, e eu não poderia depois
fazer um tão longo caminho como o que já fiz; mas visto que recebeste
ordens de Deus para isso, usa tuas unhas nesta obra.”
Obedecendo ao ancião, o leão cavou de súbito uma
fossa suficiente, e Zózimo depois de regar com suas lágrimas os pés da
Santa, e com muitas orações, implorando sua assistência para todo o
mundo e particularmente por ele; cobriu o corpo de terra, deixando-o
como o havia encontrado; coberto somente uma parte, por aquele velho
casaco rasgado, que havia jogado para a Santa dois anos antes. Enquanto
isso, o leão permaneceu firme, e quando o oficio de piedade acabou,
retiraram-se os dois ao mesmo tempo. Este soberbo animal e uma doce
ovelha foram-se para o fundo do deserto, e Zózimo voltou bendizendo a
Deus e cantando um Cântico de louvor a Jesus Cristo Nosso Salvador.
Quando voltou ao mosteiro, contou-lhes desde o começo
o que lhe havia acontecido, sem nada esconder-lhes do que vira ou
escutara, para que aprendendo os efeitos milagrosos da Onipotência de
Deus, fossem cheios de admiração e que assim celebrassem com temor e com
amor; o dia da bem aventurada passagem daquela gloriosa Santa, por cuja
opinião o abade João percebeu, que alguns de meus irmãos precisavam de
correção e converteu-os pela assistência da misericórdia de Deus. Quanto
a Zózimo, depois de ter vivido até a idade de 100 anos naquele
mosteiro, foi-se em paz gozar da Presença de Deus pela Graça de Jesus
Cristo, ao qual com Seu Pai e o adorável Espírito Santo vivificador das
almas, a honra, o poder e a glória pertencem pelos séculos dos séculos.
Amém.
Folheto Missionário número PA19b
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Editor: Bishop Alexander (Mileant)
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